Estou a escrever-te porque sinto que não me expliquei bem sobre porque criei esta imagem de uma mulher metade negra, metade branca (principalmente negra!). Do que me lembro agora foi de ter ficado muito impressionada, na história da Josephine Baker, com o impacto que o seu corpo teve na Europa (basicamente em Franca). Os homens ficaram loucos com ela, com aquela coisa exótica, aquela coisa louca, cómica e sexy. O seu corpo (quase nu) e as suas, digamos, dinâmicas (energia/movimento/comicidade) criou todo um frisson em torno dela. Logo, se quisesse trabalhar sobre ela eu teria que, de algum modo, trazer de volta o corpo dela, era incontornavel. E, sendo branca, teria que me tornar negra para poder trazer de volta o seu corpo.
Claro que assim que pensei em pintar-me de negra adorei a ideia, porque na altura (e talvez ainda agora) interessava-me muito a ideia de metamorfosear o meu corpo. Adoro tudo o que seja mudar o nosso aspecto enquanto seres humanos, mudar a nossa imagem, transformando o que somos habitualmente, sendo outros seres, ainda que por pouco tempo.
Assim que pensei nisso tambem gostei imenso da ideia porque me apercebi imediatamente do efeito fortíssimo que uma pessoa ter duas cores ao mesmo tempo iria criar. Especialmente ser negra e ser branca ao mesmo tempo. Já nao há nem um lado nem o outro, há os dois lados numa única entidade, duas “raças” num só corpo. “Recebo a tua cor em mim”. Ha ainda a vibração ou fricção que a impossibilidade e o paradoxo criam.
E, de certa forma, a Josephine Baker também se tornou meio negra, meio branca ao longo da sua vida, porque ela foi completamente assimilada pela cultura branca europeia.
E há ainda, pelo menos, mais uma razão para esta “mulher de duas faces”, que é eu ter de me confrontar com a “missão” de fazer um solo sobre alguém (ja tive este problema ao fazer um solo sobre o Nijinsky): como faço para assumir esta missão? Falo apenas da outra pessoa? Ou deverei falar também de mim?
Como me posiciono no “meio” desta pessoa, no meio deste trabalho sobre esta pessoa? A mulher branca e negra é também uma resposta a esta questão, faco uma espécie de fusão.
Outra coisa: os negros têm uma Historia (terrível) de tentarem tornar a sua pele branca. E eu sabia que estava a virar a história de pernas para o ar ao pintar-me de negra.
— carta de Vera Mantero a Aylin Ersoz
Escrevia Mantero na folha de sala nessa altura: “A minha relação com a dança gira à volta das seguintes questões: o que é que a dança diz? O que é que eu posso dizer com a dança? O que é que eu estou a dizer quando estou a dançar?”. A capacidade e a incapacidade de a dança DIZER estavam no centro das preocupações criativas da autora à época (... não estarão ainda?). A estratégia de inclusão (nas acções, nos movimentos, nos impulsos) de outros materiais que não os habitualmente utilizados pela dança foi o recurso e a pesquisa que a autora empreendeu para forçar-empurrar-pressionar a dança a DIZER.
Um fenómeno algo raro e curioso se deu com este solo: a sua apresentação nunca foi interrompida, ele tem sido apresentado regularmente ao longo dos últimos vinte e seis anos. E se a dita falta de crença começou por produzir um solo algo angustiado e sofrido, essa apresentação contínua e repetida transformou o trabalho e transportou-o dessa zona de dor e angústia para uma zona bem mais luminosa, de humor e gozo, deixando no entanto intactas as suas estruturas e fundações.
“I Was Here revisita a peça I Am Here criada em 2003 e que, por sua vez, visita o universo da artista plástica Helena Almeida. Este ‘hábito’ de re-visitar, re-habitar, viver a mesma coisa, mas de um outro prisma, de uma outra perspectiva, acompanha desde sempre o modus operandi de João Fiadeiro. O dispositivo da ‘conferencia-performance’, lugar híbrido entre a apresentação e a representação, entre a performance e o documento, amplifica ainda mais esse modo de operar, possibilitando a experiência simultânea do estar ‘presente-ausente’, tão cara ao pensamento de Fiadeiro. (...) I Was Here expõe – através da apresentação de filmes, fotos, maquetes e demonstrações – o modo como se deu o encontro com o trabalho e com a própria Helena Almeida; a forma como se desenrolou, nas diferentes escalas, o deslocamento entre o afecto original, a formulação do enunciado e a manifestação da obra; e a forma como se processou a relação com os diversos colaboradores, sobretudo com o artista visual e arquitecto Walter Lauterer, autor da cenografia-escultura que recebe o corpo de João Fiadeiro em I Am Here.”
“Se tivesse que reduzir, numa só palavra, o meu ‘modo de operação’, aquilo que me move e me define enquanto artista, diria que funciono e trabalho com o ’resto’. O ‘resto’ é aquilo que fica, que foi esquecido (porque não existe crime perfeito). O ‘resto’ é o que cria ‘vazio’. E é a prova da ausência de uma presença. Ou, melhor ainda, é a presença de uma ausência. É no ‘resto’ que vamos encontrar os rastos para darmos início à impossível tarefa de re-construir o mundo, uma e outra vez. Atrai-me esta ideia de saber que algo cá esteve antes de mim e que o que ficou, resistiu. O resto é também o que está entre o corpo e ‘a presença do outro no corpo’, uma fuga permanente para coisas que ainda não são, para coisas que podem ser. E é nisso que penso: em como dar a ver o que não está lá. Como trabalhar com uma matéria tão volátil como o vazio. Como apresentar o ‘entre’ das coisas? E, pior ainda, como representá-lo?”
— João Fiadeiro, 2008
Um projecto de e com Filipe Pereira e Teresa Silva, concebido a convite do -mente para o evento bairro-mente.
“O que fica do que passa é sempre uma sensação. Tanto evoca o lugar da memória, como se manifesta como projecção das nossas imagens e ideias no que vemos. Funciona através de um corpo de luz que se materializa; através de uma dança feita de impressões momentâneas; através de materiais que se dão a ver como seres orgânicos ou fenómenos naturais; através de uma boca que se abre lentamente e que reconfigura a cada segundo a expressão de um rosto. A aventura aqui é darmo-nos a possibilidade de ter, por momentos, um olho que sente.”
— Filipe Pereira e Teresa Silva
REACTING TO TIME, portugueses na performance, procura actualizar a especificidade da memória corporal destas primeiras experiências. Aceder à origem dessa informação, actualizá-la pela transmissão da experiência directa e apresentá-la publicamente, são os objetivos deste projeto. Trata-se de constituir um arquivo vivo, tornado presente nos corpos. Vânia Rovisco desenvolverá um trabalho de contextualização e de investigação e trabalhará com os primeiros agentes da performance em Portugal na actualização destes trabalhos inaugurais para posteriormente os transmitir. Trata-se de toda uma linhagem não transferida, um passado pouco ou nada presente. REACTING TO TIME, portugueses na performance pretende promover o conhecimento de alguns autores do período em foco e dos seus trabalhos. Um legado transmissível – como é o caso da linguagem do corpo, que provém de uma relação de acumulação de acções culturais reflexivas – não ter continuidade ou até não estar presente na memória é uma falha no (re)conhecimento de um património que nos pertence.
Nos anos em torno da revolução de 25 de Abril de 1974, uma dinâmica peculiar pautou a actividade artística portuguesa: num país fechado sobre si mesmo, fora dos circuitos e moldes convencionais de apresentação, um conjunto de eventos colocaram Portugal em sintonia com as questões e com as práticas que animavam a vanguarda artística internacional.
O experimentalismo performativo dos anos 70 e 80 do século XX, onde o corpo assumiu um novo lugar na prática artística, atravessou as diferentes áreas, trazendo novas modalidades de composição, apresentação e experiência. Primeiro em Lisboa, com o grupo de poesia experimental, e na Galeria Judite da Cruz, depois no Porto e em Coimbra, passando pelas Caldas da Rainha e Torres Vedras. No início em eventos isolados, depois em programações e festivais nacionais e internacionais. De meados dos anos 70 até aos anos 80, a dinâmica destas apresentações foi crescente, polarizada em torno do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, dos quatro Encontros Internacionais de Arte e da Alternativa 0, do Ciclo de Arte Moderna no IADE e da exposição Massificação e Identidade Cultural mas também no circuito das galerias, com os happenings nas galerias Diferença, Quadrum e Diagonale (Paris). Assim, no princípio dos anos 80 nasce o Festival Alternativa em Almada e a Bienal de Cerveira, tem lugar o Festival de Performance Portuguesa em Amesterdão e, em 1985, no Centre Georges Pompidou em Paris, o mesmo ano em que tem lugar uma primeira retrospectiva da Performance em Portugal, em Torres Vedras, no I Encontro Nacional de Performance. Nomes como Albuquerque Mendes, Fernando Azevedo, João Dixo, Artur Barrio, Gerardo Burmester, Miguel Yeco, Silvestre Pestana, Elisabete Mileu, Manuel Barbosa, Fernando Aguiar, António Olaio, Ção Pestana, Rui Órfão e Alberto Carneiro definem as coordenadas de um primeiro corpo performativo português.
“notforgetnotforgive é uma performance (...) criada em 1999 para o Projecto 99, de Francisco Camacho. Imaginado especificamente para o wc masculino do Teatro Carlos Alberto no Porto, foi posteriormente apresentada no wc da discoteca Lux em Lisboa e anos mais tarde feita uma versão para palco, para museu, entre outros formatos, igualmente transmitida a outras intérpretes. (...) notforgetnotforgive, pode ser lida como um posicionamento acerca da importância da inscrição num mundo crescentemente amnésico. (...) Em notforgetnotforgive, essa amnésia é recusada e desconstruída através de políticas da memória, com possíveis leituras autobiográficas presentes na obra de Lagido.”
— João Manuel de Oliveira
subtítulo: Lamento da Mulher não Barbada
ou: Ser Mulher é ter Pêlo Onde se Quer
“O que eu sei é que os beijos bem dados deixam marcas e os beijos mal dados ainda mais marcas deixam. Há beijos com sabor a bigode que se agarram ao corpo afectivo. Há mulheres que caçam bigodes com beijos. Se os bigodes eram coisas de homens, os seios eram coisas de mulheres. Frequentemente, os dois encontram-se em paisagens des-amorosas. Porque, hoje, complica-se o género numa revolução capilar.”
— Sónia Baptista
"Tensão de palavras-coisas no espaço-tempo, estrutura dinâmica: multiplicidade de movimentos concomitantes.”
— in Plano-Piloto para Poesia Concreta; São Paulo, 1958
“No Mestrado em Dança (2011/2013) no CNDC de Angers, iniciei uma pesquisa em torno do corpo nomeado pela disciplina de Anatomia. A pesquisa resulta na criação de uma Colecção de peças de dança, a que chamo de homenagens-dançantes, dedicadas aos orifícios do corpo. Trata-se de uma colecção de estudos febris, desenvolvidos em camadas de leitura, observação, experiência empírica, escrita e composição coreográfica que procuram desvendar os segredos escondidos na constituição física e assim rever funções destinadas e relações pré-estabelecidas. A Anatomia é a disciplina que nomeia as partes do todo, segmenta e estabiliza. O delírio acontece nas acções de isolar, sobrepor ou multiplicar as funções de uma parte nomeada. Esta entra em crise, revela a sua autonomia e renova relações. Deste modo, compõem-se coreografias do sensível onde a palavra e a dança são a entrada privilegiada para uma outra-anatomia.”
—Ana Rita Teodoro
“do desconcerto, por um lado / da aventura, por outro” é a primeira de uma série de incursões à relação entre acto e conhecimento, com que se pretende aferir as dependências entre um e outro em corpos que aprendem e desaprendem, e contrapor a capacidade destes à regulação dos saberes.
Perante tal horizonte, cabe-nos a arqueologia de um passado tão próprio quanto comum, pelo qual viemos a incorporar o paradoxo de uma época: acumular sem fim, para uso de uma vida sobre a qual pouco podemos. Interessa-nos, por exemplo, a formação do conhecimento no acto da sua enunciação; de como corpo e contexto, potencia e possibilidade, se entrecruzam para situar o que acontece; ou de como, do desconcerto entre memória e acção, o que é sabido perde sentido. Também há a confusão entre o que se sabe de uma maneira, o que se sabe de outra, e o que não se sabe porque se esqueceu. Coisas da razão, da intuição, e de tantas outras faculdades, entrelaçadas entre si em sinestesias várias. Interessa-nos o desnorte como requisito da aprendizagem, o acaso e a vontade como meios do saber por vir; de como se aprende na ausência de pedagogias, e de como com isso se criam singularidades. Há o inconsciente, do qual pouco se sabe, e há também o outro, com O grande ou nem tanto. Encontros fartos de estranheza e amplitude, quase além do reconhecimento senão mesmo.Este é, enfim, um estudo sobre a própria condição do estudo.
— Carlos Manuel Oliveira
“No Mestrado em Dança (2011/2013) no CNDC de Angers, iniciei uma pesquisa em torno do corpo nomeado pela disciplina de Anatomia. A pesquisa resulta na criação de uma Colecção de peças de dança, a que chamo de homenagens-dançantes, dedicadas aos orifícios do corpo. Trata-se de uma colecção de estudos febris, desenvolvidos em camadas de leitura, observação, experiência empírica, escrita e composição coreográfica que procuram desvendar os segredos escondidos na constituição física e assim rever funções destinadas e relações pré-estabelecidas. A Anatomia é a disciplina que nomeia as partes do todo, segmenta e estabiliza. O delírio acontece nas acções de isolar, sobrepor ou multiplicar as funções de uma parte nomeada. Esta entra em crise, revela a sua autonomia e renova relações. Deste modo, compõem-se coreografias do sensível onde a palavra e a dança são a entrada privilegiada para uma outra-anatomia.”
—Ana Rita Teodoro
“Um concerto com o público em pé, mesmo em lógica de danceteria ou rave, ou o que seja, com o intuito de fazer o público dançar. Em palco 1 piano, 1 pianista, 1 pista de dança, vários públicos e vários dispositivos eletromagnéticos. Zero computadores igual a zero bytes.”
— Simão Costa
Construindo na galeria do Teatro Sá da Bandeira uma cronologia para a dança em Portugal, PARA UMA TIMELINE A HAVER é um exercício colectivo de investigação e de sinalização de marcos relativos ao desenvolvimento e disseminação da dança como prática artística em Portugal nos séculos XX e XXI, com especial incidência na segunda metade do século XX.
Levado a cabo entre 2016 e 2017 e assumindo o presente como lugar de enunciação, propõe a construção singular de uma série de cronologias para a dança contemporânea em Portugal, relacionando eventos de matriz social, política, cultural, biográfica e artística – sugeridos como significativos por bailarinos, coreógrafos, críticos, técnicos, historiadores e espectadores.
Com este exercício, trata-se de sinalizar episódios que – influenciando autores, práticas e instituições – foram delineando a história da dança em Portugal, inserindo-os numa perspectiva alargada tanto das transformações pelas quais a sociedade portuguesa passou como do discurso sobre o coreográfico (e o que é ou pode ser a dança como prática artística), de modo a entrever tensões, momentos-chave e episódios emblemáticos.
— Ana Bigotte Vieira e João dos Santos Martins
Vera Mantero
24.2.17
João Fiadeiro e Paula Caspão
11.3.17
Teresa Silva e Filipe Pereira
6.4.17
António Olaio, Clara Menéres, Verónica Metello, Vânia Rovisco, Carlota Lagido, Daniel Pizamiglio, Sónia Baptista e convidados
20.5.17
Ana Rita Teodoro e Carlos Manuel Oliveira
16.6.17
Cerca de 30 fotografias que traçam o percurso de Vera Mantero, das suas primeiras criações às mais recentes. A exposição integra ainda a consulta de registos videográficos de alguns dos trabalhos da coreógrafa.